domingo, 9 de junho de 2013

Âmbar


Ficou curiosa de saber que o seu amor era amarelo e não rosinha bebê que tinha formato e som característicos e que era inesgotável naquele colorido ocre nada ictérico ensolarado como gema de ovo. Então saiu com seus passos vacilantes e enrugados pelas ruas olhou para a cara das pessoas e percebeu que a cor de açafrão deveria ser transparente pois ninguém se ofuscava nem se desentristecia com ela; todos estavam muito ocupados com sua palidez do de dentro que as despigmentava por fora. Foi quando resolveu alegrar o mundo e tornou-se camelô de cores e de amores de todos os perfis. No começo teve até algum prejuízo pois o desbotado muitas vezes empalidece de tal forma que evapora em forma de fumaça mas depois os clientes foram se chegando invadindo sua banca de entretons e disputando labaredas fagulhas e luzeiros. Saíam mais os amores escarlates, ruborizados de propósito em nuances dos mais diversos tanto que os assanhados em carmim logo estavam em falta. Mas os verdes tom de abacate de esmeralda e de clorofila não ficaram atrás junto com os azuis da Prússia e os índigos comuns neste tempo em que tudo se harmoniza no conforto de um jeans. Curioso no entanto foi perceber que à medida que os amores iam sendo comercializados - mas entenda-se que isso foi apenas pró-forma pois as coisas amorosas são avessas a esse tipo de transação - ela ia rejuvenescendo e se embelezando e o enlourado de seu amor começava de novo a se pirilampear e ter o pasmo dos recém-nascidos. Tinha ouvido certa vez que amor nunca tem sobra nunca se desperdiça nunca envelhece e deixou que sua ideia de mercador se expandisse em franquias mesmo que mascaradas por paladares joias perfumes melodias. Foi então que entendeu por que os antigos sempre pintavam o amor menino e por que o arco-íris sempre termina num pote de ouro. Amarelo.

                                                                                                      (imagem: http://www.google.com.br)

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Deia



No trajeto entre a escova e dentes e a cama, esbarro no braço do sofá azul e resolvo adiar o momento de me colocar, sozinha, embaixo das cobertas: o novo livro do Valter Hugo Mãe ainda está dentro da caixa de papelão, intocado. Desfeita deixá-lo escondido ali.

Sinto um vento gelado vindo da cozinha e vou até lá para pegar a faquinha de cabo preto; o durex grosso que o correio coloca não dá para abrir mesmo, sem alguma coisa cortante.  A faca não está no lugar, não está em lugar nenhum. Deia adora alterar os espaços das coisas. A camisola de cambraia faz os bicos de meus seios arrepiarem-se, serve mesmo a faca de pão. Uma gota de sangue quase mancha as páginas creme, para que grampo com todo o durex reforçado? “pousava a vassoura no chão, acumulava o pó num canto, via-o amontoar-se como uma obra a crescer”, sempre a mania de abrir a esmo e ler alguma coisa antes de começar direito sentada no sofá azul. E agora esse exagero burocrático de horas extras e de vida regrada. Deia não foi sempre respeitada ali? Ai, essa gaveta bagunçada! Não saiu sempre que precisou resolver isto ou aquilo? “uma mulher apaixonada não se põe debaixo de qualquer um, sabendo que vai ser usada como um traste sem vontade própria... ele não seria mais do que um oportunista, aproveitando-se da sua condição humilde de empregada para se pôr nela e acentuar a sua ignorância”.

Outra noite revirando na cama. Por que mexer em vespeiro? Uns pagam pelos outros, sem dúvida que é assim. Creche agora é responsabilidade minha, ai que frio neste tempo de outono! O menino tem a cara do pai, até a covinha na bochecha direita é igual, Deia diz. Criança risonha. Mas e o governo? E os impostos pagos? Por acaso uma casa de família é uma empresa como qualquer outra que lucra com o trabalho de seus funcionários? Quantas regras! Banco de horas! O tempo vai deglutindo nosso sentido de bom senso com boca escancarada. A vida passa em segredo assobiando canções sem som e ninguém se dá conta de tocar os instrumentos para ouvir a música.

Troco a camisola por um pijama de flanela daqueles quadriculados. O menino de Deia precisa de uns macacões mais quentes, é tempo de frio. Besteira insistir, o sono não vem. Macacões e uns brinquedos educativos. Tão risonho! Melhor começar a ler o livro.  A capa parece uma colcha de retalhos com vários pares de meias de tricô, de crochê. Cor só por fora. Livro que trata dos trabalhadores nasce com a sina de ser apenas preto e branco: “de noite, a maria da graça sonhava que às portas do céu se vendiam souvenirs da vida na terra...”


 (imagem: http://www.google.com.br)

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Espera



O salto do sapato de verniz deve ter uns dez centímetros. Pernas perfeitas, joelhos meio à mostra abaixo da saia justa bem preta, com uns fiozinhos cinza minúsculos, imperceptíveis.   O cinto largo separa os quadris volumosos do tronco, vestido com camisa branquíssima de botões dourados. Combinam com o brinco enorme em forma de argola. Seios pesados e caídos agigantam-se sob o tecido bem passado. Cabelo negro, preso num coque, vê-se que é longo: de forma alguma atrapalha as anotações de consultas no quadro colorido exposto no visor. Temos vagas só daqui a três semanas! Infelizmente, senhora! Creio não ser possível, mas vou falar com ele. Entendo sua urgência, logo mais retorno. Os sapatos atravessam a sala com passinhos pequenos e equilibram o corpo ainda mais pesado pelo colar de três voltas (serão quatro?). Voltas douradas. Lábios rosa antigo balbuciam perguntas fluidas sem vírgulas sem parênteses sem sorrisos. Tudo mecânico, cronometrado, oco. Os sapatos voltam balançando os seios, os colares e as argolas das orelhas. Pisam com a ponta do pé numa espécie de dança de fundo, distraindo a espera interminável e o cheiro de bala de morango do pote ao lado das revistas. O gordo da cadeira em frente pega três ao mesmo tempo. Amassa todos os papéis formando uma bolinha, que cai no chão e fica ali. O bebê chora no colo da mulher de sapato amarelo. Ela levanta e caminha de um lado para o outro, até que desabotoa a blusa e afunda a boca cheia de lágrimas no bico de seu peito minguado. O gordo olha, pega mais duas balas e guarda os papéis, desta vez, no bolso da jaqueta camurça.  O cordão do tênis está desamarrado e ele abaixa para fazer o laço. Esforça-se e fica cada vez mais vermelho. Estica as pernas. Infelizmente não vai ser possível mesmo, desculpe; a agenda está lotada, só se alguém desistir. O bebê aproveita o silêncio apetitoso e suga com força a mulher de passos cor de ovo. Ela tem olhos azuis vazios e não percebe a indiscrição do gordo, que desiste do cadarço.  Na sala sem janelas a expectativa dói e o telefone toca. Só daqui a três semanas, a menos que alguém desista. O bebê dorme e o gordo cochila com cheiro de suor ácido. Sapatos amarelos saltos dez caminham em sua direção. Olhos azuis balbuciam delícias e desfilam com colar de madrepérolas sobre os seios nus, escondidos pela camiseta branca decotada. Cabelos negros balançam com a brisa e o corpo longilíneo deixa entrever maravilhas dentro da saia justa. Preta, com uns fiozinhos cinza minúsculos, imperceptíveis. É tempo de morangos e não há pressa. O bebê dorme e o gordo ri.

 (imagem: http://www.google.com.br)


quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Tara





               “Escrever é perder a reputação.” As palavras vão aparecendo no branco com aquela cara canalha, intensificando o prazer do escritor de apalpá-las, de beliscá-las com gula de tarado. Vêm suadas, exigindo listas e projetos que quase ninguém tem. Mas também vêm debochadas, com cheiro de terra molhada, causando enjoo e prostração.

               Esse é o mistério. Sensações conhecidas arranham o papel e o que se pretendia sedutor, como um sussurro no cangote, vai ficando rouco e adiposo, anestesiando o deslumbramento. E as palavras longilíneas criam celulites e sacolejam estrias até minguarem transparentes, até sumirem encharcadas por clichês.

               São perversas as palavras, todavia. Acorrentam o Gigante e passeiam escandalosas em volta dele com trejeitos e fetiches mascarados. Tocam-lhe com os pés nus e fazem-lhe cócegas nos antebraços de pelos eriçados , provocando-lhe arrepios de embriaguez
               E tudo recomeça.

               Escancaram as palavras a intimidade de seus invólucros e de novo o lápis desliza safado. Então o cheiro de terra molhada vira janela embaçada e o clichê vira vento em gestação, vira vontade de chover.



(imagem: http://www.google.com.br)

domingo, 23 de dezembro de 2012

Cuco!


              Aponta com a mão minúscula e com olhar sério de deslumbramento. Tique-taque. Vou seguindo a candura do gesto, buscando o motivo daquele pedido mudo. Nenhuma palavra. Tique-taque. A mãozinha dirige o mundo desapegado de caprichos; imprescindível é perseguir o caminho da pureza. Nenhum som. Som nenhum. Apenas o tique-taque do relógio e o pasmo incompleto à procura do indefinido.

               Assim é este momento. Instante de diligência e de esperança. Tique-taque. Tudo segue seu curso, tudo se renova neste tempo de arejar a casa, de lavar a louça, de acender as luzes. Tique-taque. Pensamentos altruístas compõem quimeras incógnitas sem rancores, sem agressividades, sem hipocrisias. E os pensamentos conduzem o mundo desapegado de preconceitos.

               A mãozinha ainda aponta e o tique-taque torna-se mais forte. O pássaro se envaidece e surge sereno, sobremaravilhado. Tique-taque. É efêmero, mas o sonho daquela mão pequenina faz a carinha séria sorrir e pronunciar sua primeira palavra: Cuco!

               Assim é este momento! Instante de harmonia e de reverência. Cuco! Tudo segue seu curso e tudo renasce neste tempo de inocência. E de epifania. Cuco!


QUE A INOCÊNCIA POSSA ENCHER NOSSOS CORAÇÕES DE HARMONIA NESTE NATAL
 E EM TODO ANO NOVO QUE SE APROXIMA.
SÃO OS VOTOS DESSES BOTÕES A TODOS OS MEUS QUERIDOS AMIGOS E SEGUIDORES.

 (imagem: http://www.google.com.br)

domingo, 28 de outubro de 2012

Instantes





          Chegou com aquele casaquinho azul, mais comprido atrás que na frente, de rasteirinha e rabo de cavalo. Entrou como sempre, conhecedora do espaço, e observou o cotidiano com olhar maduro de regozijo. Viu-me habituada à rotina ordeira e sorriu com doçura. Então tirou a bolsa à tiracolo do ombro  e o tempo retrocedeu.


          Ela usava um vestidinho curto xadrez e um chinelo de palha mínimo – valia a pena guardar como lembrança. O vestido era azul e branco. Uma fita também azul prendia uma espécie de tufo no alto da cabeça e, no ombro, a bolsinha à tiracolo combinava com o chinelo presente de viagem. Fazia pose para a foto com as duas mãozinhas unidas, apoiando a cabeça meio de lado.
          Naquela época, as fotografias eram mais calculadas, programadas. Tinham valor e guardavam com mais propriedade os instantes que mereciam eternizar-se. Roubavam fugacidades do tempo e, quando impressas, sabiam-se amareladas no futuro, tinham consciência de que aconteceria isso.
          Ela adorou o chinelo que nem devia ser confortável, pois os pés eram cutucados por fiapos de palha avessos ao trançado. Pés miúdos e roliços como as mãos, onde ainda se viam alguns furinhos próprios de crianças que parecem ter covinhas no final de cada dedo.
          Era uma graça atrás da outra naquele dia comum no meio dos outros. E tudo acontecia de forma tão natural e tão harmônica, que a vida sentia pena de seguir célere, séria, circunspecta. Você não quer guardar a bolsinha? Vamos deixá-la aqui perto, assim logo cedo, quando acordar, você a coloca de novo. Não houve jeito. Foi dormir com a bolsinha à tiracolo. Pequenina como o chinelo capaz de calçar uma menininha de três anos. Talvez nos pretendesse dizer que a felicidade que cabia lá dentro poderia querer sair disfarçada , à noite, quando ninguém mais se lembrasse de que é preciso  tomar conta dela minuto a minuto.


          Atualizou-se a foto da menina com as mãos unidas, apoiando o rosto meio de lado. Os traços também eram similares, mas não havia o chafariz despenteado no alto da cabeça. No sofá quadrado, ao lado da almofada retangular trazida de viagem, a bolsa à tiracolo de grife,  nada de palha. Dentro dela, instantes de felicidade acumulados. Prontos para acolher o momento feliz daquela noite e mais todos os outros que se eternizariam em fotos registradas em sequência; para serem vistas mais tarde ou não, isso não importa neste mundo impaciente.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Ilusões

            
               - A maior luta é sempre a da gente com a gente, ela me disse ainda com os olhos marejados. O sofrimento parece uma moita de bambus num campo seco, que se vai desfazendo. Quase tudo acaba com o tempo, não o sofrimento. Resistente, deixa marcas que se vão cobrindo, mas as cicatrizes não se obscurecem; pelo contrário, ficam cada vez mais evidentes no profundo. Dizia e olhava o nada, falando também com as mãos, seu jeito de sempre. E prosseguia:
               - A felicidade foi tanta, que incomodou, isso que aconteceu. É, foi desparafusada, desmontada e levada embora para o longe do perto, como se seu peso fosse suficiente para esmagar afetos. Esses também não se dissolvem, por mais que se distanciem. Parou então de falar e chorou mornamente, para que as lágrimas pudessem derreter seu abatimento. Então eu perguntei:
               - Você não vai reagir, não vai dizer nada?
               - Não existe linguagem sem engano e as coisas estão longe de serem dizíveis, não é?  Eu sei que sim, continuava, quase sem levantar os olhos. Importante agora é saber segurar as alegrias momentâneas, transparentes como um líquido, na concha das mãos. Sem testemunhas, sem registros, sem comprovação.
               - Você está preparada? Sente-se forte o suficiente em saber o que fazer com a vida que virá?
               - Você sabe? Quem sabe? Se é verdade que podemos viver uma pequena parte daquilo que há em nós, fingirei isso. Por fora. Farei com que a ilusão tenha gosto de canela, seja sedutora e mascarada. A canela tem poder de anestesiar rudezas e torna o bolo macio, irresistível.
               - E a outra parte? – perguntei.
               - Essa ficará registrada com palavras, como num espelho em negativo; por que perder tempo com egoísmos e com possessividades? – perguntou, e então fixou os olhos nos meus.

               Essa conversa, lembrei-me dela ao ver a foto amarelada. Se as distâncias amenizaram seu sofrimento? Talvez sim, talvez não. Os afetos certamente solidificaram aquelas cicatrizes, pois afetos são perenes, têm fios invisíveis e abraçam o de dentro. Por fora, só fica mesmo o cheiro de canela.